Mais de 75% dos pacientes com Covid longa não chegam a ser hospitalizados pela Covid inicial
Estudo americano traça um retrato preocupante do impacto de longo prazo na saúde das pessoas e no o sistema de saúde
Folha de S.Paulo - 20 de Maio de 2022Mais de três quartos dos americanos diagnosticados com Covid
longa não tiveram sintomas suficientemente graves para serem hospitalizados
quando sofreram a infecção inicial. É o que concluiu uma nova análise,
divulgada na quarta-feira (18), de dezenas de milhares de pedidos de pagamento
de seguro particular.
Os pesquisadores analisaram dados dos primeiros meses depois
de médicos começarem a usar um código especial de diagnóstico criado no ano
passado para designar a Covid longa. Os resultados traçam um retrato
preocupante do impacto sério e de longo prazo da Covid longa sobre a saúde das
pessoas e sobre o sistema de saúde americano.
A Covid longa, uma constelação complexa de sintomas da Covid
que persistem ou de sintomas novos que aparecem após a Covid e que podem
perdurar por meses ou ainda mais, tornou-se um dos legados mais temíveis da
pandemia. As estimativas sobre o número de pessoas possivelmente afetadas
variam entre 10% e 30% dos adultos infectados.
Um relatório recente do Government Accountability Office, um
órgão federal dos EUA, diz que entre 7,7 milhões e 23 milhões de pessoas nos
Estados Unidos podem ter desenvolvido Covid longa. Mas ainda há muito que não é
sabido sobre a prevalência, as causas, os tratamentos e consequências da
condição.
O novo estudo vem somar-se a um conjunto crescente de
evidências de que, embora pacientes que foram hospitalizados corram risco maior
de apresentar Covid longa, pessoas com infecções de coronavírus iniciais de
leves a moderados —que compõem a vasta maioria dos pacientes com coronavírus—
ainda podem sentir sintomas pós-Covid debilitantes, incluindo problemas
respiratórios, fadiga extrema e problemas cognitivos e de memória.
'Isso está gerando uma pandemia de pessoas que não
chegaram a ser hospitalizadas, mas acabaram com incapacidade aumentada',
disse o Dr. Paddy Ssentongo, professor assistente de epidemiologia de doenças
infecciosas na universidade Penn State, que não participou do novo estudo.
Baseada no que o artigo descreveu como o maior banco de
dados de pedidos de pagamento de seguros privados de saúde nos Estados Unidos,
a análise descobriu que entre 1º de outubro de 2021 e 31 de janeiro de 2022,
78.252 pacientes foram diagnosticados com o novo código da Classificação
Internacional de Doenças —código de diagnóstico U09.9, referente a
'condição não especificada pós-Covid 19'.
Claire Stevens, médica e acadêmica clínica no King’s College
London e não envolvida na nova pesquisa, disse que o número total de pessoas
que recebe o diagnóstico é enorme, considerando que o estudo cobriu apenas os
primeiros quatro meses após a introdução do código de diagnóstico e não incluiu
pessoas cobertas por programas governamentais de assistência médica como
Medicaid ou Medicare (se bem que incluiu pessoas com planos particulares
Medicare Advantage).
'É provável que seja apenas uma gota no oceano em
comparação com o número real', disse Stevens.
Realizado pela Fair Health, ONG que trabalha com custos de
assistência médica e questões de seguro, o estudo concluiu que 76% dos
pacientes com Covid longa não precisaram ser hospitalizados pela infecção
inicial com o coronavírus.
Outra conclusão surpreendente foi que, embora dois terços
dos pacientes tivessem problemas de saúde preexistentes em suas fichas médicas,
quase um terço não tinha —uma porcentagem muito mais alta do que Ssetongo disse
que teria previsto. 'São pessoas que eram saudáveis antes e estão dizendo
‘caras, alguma coisa não está certa comigo’.'
Os pesquisadores pretendem continuar a acompanhar os
pacientes para averiguar quanto tempo seus sintomas perduram, mas Robin
Gelburd, presidente da Fair Health, disse que a organização decidiu divulgar os
dados dos primeiros quatro meses agora, 'dada a urgência' da questão.
Ela disse que os pesquisadores estão buscando respostas para
algumas das perguntas não tratadas no relatório; entre elas, detalhar os
problemas de saúde anteriores dos pacientes para tentar identificar se
determinados problemas médicos podem elevar o risco de pessoas sofrerem Covid
longa.
A organização também pretende analisar quantos pacientes no
estudo foram vacinados e quando, disse Gelburd. Mais de três quartos dos
pacientes no estudo foram infectados em 2021, a maioria deles no segundo
semestre do ano. Em média, os pacientes continuavam a apresentar sintomas de
Covid persistente que os qualificavam para o diagnóstico quatro meses e meio
depois de infectados.
As descobertas sugerem um impacto potencialmente espantoso
da Covid persistente sobre pessoas no auge da vida e sobre a sociedade de modo
geral. Quase 35% dos pacientes tinham entre 36 e 50 anos de idade, quase um
terço, entre 51 e 64, e 17% estavam na faixa dos 23 aos 35 anos. Crianças
também foram diagnosticadas com condições pós-Covid: quase 4% dos pacientes
tinham 12 anos de idade ou menos, e quase 7%, entre 13 e 22 anos.
Seis por cento dos pacientes tinham 65 anos ou mais. Essa
parcela provavelmente reflete o fato de que pacientes cobertos pelo programa
Medicare regular não foram incluídos no estudo. Eles tinham probabilidade muito
maior que os grupos mais jovens com Covid persistente de apresentar problemas
médicos crônicos preexistentes.
Os dados de seguro analisados não incluíram informações
sobre a raça ou etnia dos pacientes.
A análise, que segundo Gelburd foi avaliada por um revisor
acadêmico independente mas não passou por uma revisão formal de pares, também
calculou um escore de risco dos pacientes, uma maneira de estimar a
probabilidade de as pessoas utilizarem recursos médicos. Comparando todos os
pedidos de pagamento de seguro dos pacientes até 90 dias antes de contraírem a
Covid com os pedidos que fizeram 30 dias ou mais depois de infectadas, o estudo
concluiu que o escore médio de risco subiu entre os pacientes de todas as
faixas etárias.
Gelburd e outros especialistas disseram que os escores
sugerem que as repercussões da Covid persistente não se limitam ao aumento de
gastos médicos. Eles assinalam 'quantas pessoas estão abandonando seu
trabalho, quantas estão recebendo status de invalidez, quanto absenteísmo está
ocorrendo nas escolas', disse Gelburd. 'É como uma pedrinha jogada
num lago. As ondinhas em volta da pedra são círculos concêntricos de
impacto.'
Pelo fato de o estudo ter captado apenas uma população que
tem convênio médico particular, disse Ssentongo, é quase certo que ele
subestima a abrangência e o ônus da Covid persistente, especialmente porque
comunidades de baixa renda têm sido desproporcionalmente afetadas pelo vírus e
frequentemente têm menos acesso à saúde. 'Acho que pode ser ainda pior se
incluirmos os setores cobertos pelo Medicaid e todas essas outras pessoas que
ficaram de fora' dos dados do estudo, ele disse.
O estudo apontou que 60% dos pacientes com diagnóstico
pós-Covid são mulheres, contra 54% do total de pacientes de Covid no banco de
dados da FAIR Health. Mas nas faixas etárias mais jovens e mais velhas, há uma
equivalência aproximada entre homens e mulheres.
'Acho que há uma preponderância feminina nesta
condição', disse Steves, acrescentando que uma das razões pode incluir
diferenças em fatores biológicos que deixam as mulheres mais propensas a sofrer
condições autoimunes.
Os pedidos de seguro mostraram que quase um quarto dos
pacientes pós-Covid tinham sintomas respiratórios; quase um quinto tinham
tosse, e 17% foram diagnosticados com mal-estar e fadiga, uma categoria ampla
que pode incluir problemas como confusão mental e exaustão que se agravam após
atividade física ou mental. Outros problemas comuns incluíram batimentos
cardíacos anormais e desordens do sono.
O novo estudo procurou determinar até que ponto certos
sintomas eram comuns antes de os pacientes serem infectados, em comparação com
o período em que os mesmos pacientes receberam o diagnóstico de condições
pós-Covid. A conclusão foi que alguns problemas de saúde normalmente incomuns
tinham chances muito maiores de emergir durante a Covid persistente. Por
exemplo, problemas musculares ocorriam com frequência 11 vezes maior em
pacientes com Covid persistente; embolismos pulmonares, com frequência 2,6
vezes maior, e determinados tipos de desordens relacionadas ao cérebro
ocorreram com o dobro da frequência.
Como estudos anteriores, o relatório concluiu que, se os
pacientes precisaram ser hospitalizados pela infecção inicial, correram risco
mais alto de sintomas de longo prazo que os pacientes não hospitalizados. O
relatório chegou a essa conclusão porque 24% dos pacientes diagnosticados com a
condição pós-Covid haviam sido hospitalizados –mais homens do que mulheres--,
sendo que apenas 8% de todos os pacientes com coronavírus precisaram ser
internados em um hospital.
Mesmo assim, como a grande maioria das pessoas não precisa
ser hospitalizada por Covid, especialistas médicos disseram que este estudo e
outros indicam que muitas pessoas com doença inicial leve ou moderada acabarão
apresentando sintomas persistentes ou novos problemas de saúde pós-Covid.