Aplicação de novas tecnologias amadurece no setor de seguros
Expectativa de dirsupção no setor deu lugar a visão mais realista sobre futuro da indústria
Valor Econômico - 26 de Setembro de 2022A euforia passou. As expectativas sobre disrupção e desintermediação que muitas insurtechs, investidores e seguradoras alimentaram nos últimos anos sobre o impacto de novas tecnologias deram lugar a uma visão mais realista sobre o que esperar para o futuro da indústria global de seguros.
Segundo participantes brasileiros do InsurTech Connect
(ITC), maior evento de seguros e inovação do mundo, muitos mitos relacionados à
inovação caíram por terra nos últimos anos. Um exemplo é o fim da
intermediação. “O discurso de que o canal de corretores iria acabar com a
chegada do digital não se confirmou”, afirmou o fundador da plataforma CQCS e
presidente do ITC Latam, Gustavo Doria. “Ao contrário, vários anos depois,
agora só se fala de distribuição humanizada. O que seria o futuro virou
passado.”
Para o cofundador e CEO da plataforma de soluções digitais
de marketing e venda de seguros Zipia, Pedro Yue, “a visão do mercado evoluiu
para a ideia de que a tecnologia vai mesmo empoderar a ponta de distribuição”.
O diretor operacional de corporate da administradora e subscritora de seguros
Livonius MGA, Marcio Uberti, acrescenta que as ferramentas digitais vão
aumentar a capacidade e trazer uma subscrição mais inteligente para os canais.
“Na prática, é a intermediação que vai fazer a diferença para a agilidade e a
criação de produtos mais ajustados às necessidades de clientes”, afirmou.
Quando o ITC surgiu, há sete anos, o mundo vivia um
entusiasmo trazido por tecnologias emergentes que prometiam mudar tudo no setor
financeiro. As fintechs se tornaram símbolos de um movimento que destronaria
grandes e ineficientes conglomerados. Na maior convenção global de inovação e
seguros, o sentimento era parecido. As palavras mais ouvidas entre 2016 e 2018
eram disrupção e desintermediação.
Há sete anos, a área de exposição do ITC, na qual insurtechs
de 58 países expõem seus modelos de negócios, exibia uma profusão de soluções
que beiravam o futurismo, como atendimento de sinistros feito por drones,
mapeamento a laser de propriedades ou monitoramento de construções por meio de
sensores. Era uma visão baseada, em boa parte, na melhora de produtos
específicos, como seguro auto, de propriedades e grandes riscos.
Segundo o consultor do CQCS Insurtech Connect, Heitor Ohara,
que participa do evento desde a segunda edição, no início havia muitos painéis
sobre blockchain, por exemplo. Na edição deste ano, o tema apareceu em apenas
uma apresentação. O motivo para essa redução não tem a ver com nenhuma
frustração sobre a tecnologia. As soluções baseadas no conceito por trás das
criptomoedas ainda são vistas como úteis em áreas como contratos, segurança de
informações e na automação de alguns processos. No entanto, diferente do que
acontece em segmentos como pagamentos digitais, o blockchain tende a ter
impacto menos “revolucionário” sobre a indústria securitária.
Com o amadurecimento da visão sobre o efeito da
transformação tecnológica para o setor, a ideia de que as startups de seguro
iriam causar uma disrupção no mercado passou a dar lugar a outros conceitos,
como parcerias e análise de dados. A própria evolução de algumas insurtechs
emblemáticas, como a americana Lemonade, trouxe lições importantes.
A companhia surgiu em 2015 com uma visão de revolucionar a
indústria de seguros por meio da oferta de produtos digitais e venda direta ao
consumidor com uso de aplicativos. De alguns anos para cá, a Lemonade tem se
mantido firme na missão de ter o consumidor no centro do negócio, mas ajustou o
discurso sobre desintermediação. Passou a adotar o serviço de corretores, por exemplo,
para manter seu crescimento.
A ideia de eliminar a intermediação, na verdade,
transformou-se no conceito de multicanalidade ou omnicanalidade — ou seja, o
acesso às proteções e assistências por qualquer formato e meio de distribuição
que beneficie o cliente. “Assuntos que estavam na moda há alguns anos
decantaram e hoje o mercado volta a atenção para os canais”, avaliou o
conselheiro da Meta Brasil, Julio Cezar Pauzeiro.
“As insurtechs amadureceram”, afirmou o CEO da provedora de
sistemas para seguros Sistran, Marcio Paes. “Com ajuda do investimento
qualificado do venture capital, os modelos evoluíram em termos de visão,
consistência, escalabilidade e arquitetura”, acrescentou.
Dentro dessa visão, tem ficado mais disseminado no setor o
conceito de “embedded”, ou seja, seguros embutidos ou invisíveis. São proteções
que vêm junto na compra de produtos ou serviços, como eletrodomésticos ou
viagens. “As APIs [protocolos para interligação de sistemas] são muito boas
para tirar fricção e criar transparência, e a ‘apeificação’ [uso intensivo de
aplicativos] do mercado vai ajudar a disseminar ainda mais os seguros
embutidos”, afirmou o fundador do ITC e investidor de venture capital, Caribou
Hoenig.
Para que os modelos de negócios centrados no consumidor
possam se tornar realidade na indústria, são necessários dados, muitos dados.
Quase todos os painéis do ITC trouxeram em maior ou menor grau a visão de que a
verdadeira transformação da indústria de seguros virá por meio dos dados.
A ideia é que um mundo novo de automação, redução de custos,
aumento da velocidade de ação e reação e, sobretudo, de entendimento das
necessidades das pessoas em termos de proteção e assistência vai se abrir com a
correta utilização de ferramentas como inteligência artificial e aprendizado de
máquinas. Na visão de especialistas, são os dados que vão levar o setor essa
nova era de customização e atendimento em tempo real, como pagamentos
instantâneos.
No entanto, participantes brasileiros da conferência, entre
altos executivos de seguradoras e representantes de corretoras, ressaltaram
haver ainda um “gap” entre discurso e prática. Existe ainda uma barreira que
muitas companhias mais antigas têm adiado ao máximo enfrentar: a própria
infraestrutura legada de TI.
De acordo com o chefe da operação na América Latina da Earnix,
Ricardo Lachac, “em geral, as seguradoras [mais antigas] costumam apresentar
estrutura de tecnologia inflexível, com uma miríade de sistemas legados e
várias plataformas diferentes operando para obter apenas um fim específico”.
Conforme o especialista, o cenário mais comum é que as empresas tenham bolsões
de dados separados, com informações dispersas e, muitas vezes, conflitantes.
A executiva-chefe de benefícios da centenária empresa de
seguros e serviços financeiros americana Equitable, Stephanie Shields, disse
que programar inteligência artificial é muito mais complexo do que desenvolver
uma programação comum. Soluções do gênero exigem padronização de dados e
informações consistentes como ponto de partida. O trabalho de tratar dados pode
ser muito complexo, como reconheceu Shields.
A Equitable recebe mais consultas e solicitações de
sinistros por e-mail hoje do que antes da pandemia. “São dezenas de milhares de
e-mails todos os dias”, afirmou a executiva. O trabalho de coleta de dados era
feito manualmente, mas em um certo ponto passou a ficar muito lento e a afetar
os atendimentos. Para resolver o problema, a seguradora encontrou no mercado
soluções para automatizar ao máximo esse trabalho. Uma das soluções, da
insurtech Ushur, consegue realizar 80% da coleta, com 90% de acuracidade, disse
Shields.
A experiência da Equitable ilustra outra tendência reforçada
nos painéis da feira de inovação. Se no passado a visão era de uma corrida pelo
cliente entre as insurtechs e as incumbentes, hoje a ideia de parceria
prevalece. “O setor como um todo pode se beneficiar das parcerias com
colaboradores que tenham expertises complementares”, afirmou o chefe de
estratégia da insurtech especializada em inteligência artificial thinktum,
Eugene Shafronsky.
“Em um mundo que ruma para uma hiper-personalização baseada
em inteligência artificial e a uma jornada de consumidor que pode chegar a uma
precisão quase absoluta [de antecipação das necessidades], as companhias vão
precisar umas das outras para terem sucesso em cada etapa do processo”,
complementou.
Para o investidor Hoenig, a combinação de forças faz todo
sentido em um mercado altamente regulado e complexo. “As insurtechs têm
velocidade, foco e cultura de tomar risco, enquanto incumbentes têm força,
experiência e dados.” Na visão de um executivo brasileiro que pediu para não
ser identificado, “seguro não é business de consumo, então o cara novo precisa
do antigo, e o antigo, do novo”.