A hora da telemedicina
Pandemia impulsionou o serviço e Brasil já fez 1,7 milhão de consultas à distância
Exame - 13 de Agosto de 2020A revista Exame relata que a pandemia colocou uma lupa sobre os desperdícios na cadeia de saúde brasileira, um problema antigo. De acordo com um estudo recente realizado pela plataforma de gestão de saúde DRG Brasil com 1,8 milhão de diárias hospitalares de mais de 500.000 pacientes, 37,7% das internações poderiam ter sido evitadas, por exemplo. “A crise econômica empurra o sistema de saúde na direção da eficiência. O que é caro em medicina é a medicina malfeita”, afirma Renato Couto, presidente da IAG Saúde, consultoria de eficiência em saúde e desenvolvedora da DRG Brasil.
A
grande aposta que vem chacoalhando o setor é a de que a crise causada pela
pandemia vai impulsionar os serviços de saúde digital, levando a uma
significativa redução de custos e à ampliação do acesso da população. O país
está atrasado no emprego dessa ferramenta quando comparado com outros países.
Um estudo mostra que 46% dos americanos agora usam a telemedicina, ante 11% no
ano passado.
Mas o
maior obstáculo à modernização no Brasil foi removido pela covid-19, mesmo que
temporariamente. Até abril, a regulamentação para a telemedicina determinava
que o atendimento poderia ocorrer somente com um médico nas duas pontas. A
chamada interconsulta é útil para os casos em que o paciente está com um
clínico-geral e, durante o atendimento, busca a orientação remota de um
especialista. Com o isolamento social, o Congresso Nacional liberou a
telemedicina para consultas diretas entre paciente e médico. Operadoras de
planos de saúde, laboratórios e clínicas correram para oferecer a modalidade.
De lá para cá, pelo menos 1,7 milhão de atendimentos já foram realizados, de
acordo com dados compilados pela EXAME.
O
movimento pode modificar o mercado de forma permanente. Inicialmente usado para
orientar pacientes com suspeita de contaminação pela covid-19, o recurso logo
se estendeu a consultas agendadas e atendimentos de urgência. Pacientes que
antes procurariam um pronto-socorro por causa de uma gripe passaram a pensar
duas vezes antes de sair de casa.
Os
dados das operadoras de saúde mostram o que os médicos já sabiam: boa parte dos
pacientes que buscam um pronto-socorro não precisaria estar ali. Esse costume
brasileiro é um dos grandes ralos de recursos do sistema que podem ser atacados
com as novas tecnologias.
Com
3,6 milhões de beneficiários, a Amil, por exemplo, desenvolveu uma plataforma
própria de atendimento remoto. Até agora, realizou 380.000 atendimentos via
telemedicina. Dos pacientes atendidos em emergência, só 2% procuraram um
pronto-socorro até sete dias após o atendimento remoto. Os outros 98% tiveram
sua situação resolvida no próprio atendimento remoto ou foram orientados a
marcar uma consulta com especialista, presencial ou à distância. “A
telemedicina é uma ferramenta de direcionamento do paciente para o local
adequado. Com isso, o pronto-socorro será usado por quem realmente precisar”,
afirma Fernando Pedro, diretor clínico da Amil.
O
fluxo de atendimento pode ser otimizado ainda mais cedo para evitar a piora de
doenças crônicas, o que significa outra importante redução de despesas. Um
relatório da Aon mostra que, na América Latina, as doenças que mais geram
custos médicos são, em ordem de importância, câncer, diabetes, doenças
cardiovasculares e hipertensão. “Se o atendimento virtual for usado como apoio
da atenção primária, o sistema se tornará mais sustentável e acessível”, afirma
Paulo Jorge Cardoso, vice-presidente de saúde e benefícios da Aon.
Com a
mudança de comportamento permanecendo após a pandemia, a redução do número de
atendimentos presenciais deverá ajudar a derrubar a inflação médica no país,
medida pela Variação do Custo Médico-Hospitalar, um indicador que considera
tanto o preço do serviço quanto a frequência de utilização. Em 2019, o índice
foi de 15,9%, ante uma inflação geral de 4,3%. Em 2020, a expectativa era que
ficasse perto dos 15%, segundo a consultoria de gestão de riscos Aon. Agora a
projeção é que o indicador recue para cerca de 10% no Brasil, o mais baixo dos
últimos cinco anos, também por causa do adiamento de cirurgias eletivas em
2020.
Na
operadora Prevent Senior, que já fez mais de 500.000 atendimentos via
telemedicina em 2020, a modalidade que mais ganhou força com o uso da
tecnologia foi o chamado telemonitoramento, focado em doenças crônicas e no
pós-operatório. São atendimentos com duração média de 15 minutos para verificar
se o paciente está tomando a medicação correta ou checar a situação de doenças
como a diabetes. “O monitoramento aumenta os pontos de contato com o paciente e
ajuda a reduzir as reinternações, descobrindo problemas precocemente”, afirma o
diretor médico da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Junior. A operadora,
voltada para o público idoso, também passou a oferecer outras facilidades, como
os exames via drive-thru com hora marcada.
A
disseminação da telemedicina também encurta as distâncias. O programa de
telemedicina do hospital paulistano Albert Einstein já realizou mais de
270.000 atendimentos desde 2012 — cerca de 100.000 somente neste ano. No início
do mês, o hospital ampliou sua parceria com o Ministério da Saúde na Região
Norte para levar atendimento remoto a comunidades indígenas do distrito de Iauaretê,
no Alto Rio Negro, Amazonas. Estão incluídas especialidades como cardiologia e
psiquiatria.
Outro
acordo com o governo possibilita que 20.000 médicos e enfermeiros do Sistema
Único de Saúde atendam remotamente com a plataforma do hospital. “A ferramenta
nos ajuda a levar saúde para regiões distantes e aumentar o número de
pacientes atendidos”, afirma Sidney Klajner, presidente da Sociedade
Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.
A
possibilidade de ampliar o atendimento de médicos especialistas tem incentivado
mudanças na operadora de saúde Hapvida, forte no Norte e no Nordeste. A
companhia começou a contratar equipes de especialistas como reumatologista e
endocrinologista para atender remotamente beneficiários em todo o país.
“Consigo negociar com essas equipes com mais escala, o que melhora o preço,
gerando eficiência”, diz Bruno Cals, diretor financeiro da Hapvida. Desde o
início da pandemia do coronavírus, a operadora já realizou aproximadamente
60.000 atendimentos à distância.
Para
além da consulta por vídeo, há muito espaço para a expansão do uso da
tecnologia nessa área. “A saúde é um dos últimos setores a passar por uma
transformação tecnológica. Quando um consumidor pensa em mobilidade,
alimentação ou serviços bancários, já olha para o celular. Na saúde, isso ainda
não acontece”, afirma Carlos Marinelli, presidente do Fleury. O laboratório
possui uma plataforma própria de telemedicina e desenvolve um sistema para
agregar serviços de saúde e reunir as informações de exames e consultas do
usuário em um prontuário eletrônico. Até agora já investiu 50 milhões de reais
na ideia.
A
necessidade de melhorar o uso dos recursos acabou acelerando, também, uma
discussão que já rendeu grandes brigas no sistema: a remuneração dos
prestadores de serviço pelos planos de saúde. O tema é especialmente importante
para as operadoras que não contam com hospitais e clínicas próprios, utilizando
apenas redes credenciadas.
É o
caso da Bradesco Saúde, que tem discutido com parceiros a adoção de pacotes
pré-negociados de serviços para ter mais previsibilidade de custos. O modelo
fee for service, em que a operadora paga por tudo o que é consumido no
hospital, está ficando para trás. “Boa parte dos procedimentos nos hospitais
tem desfecho previsível. Então, o custo também pode ser. Essa discussão tende a
crescer ainda mais no pós-pandemia, com maior pressão sobre os custos vindo
inclusive das empresas clientes”, afirma Thaís Jorge, diretora da Bradesco
Saúde.
Na
SulAmérica, quase 40% dos procedimentos já são remunerados via modelos
alternativos, em que o prestador de serviço divide a responsabilidade do
resultado financeiro com a operadora. Adicionalmente à mudança na forma de
remuneração, a operadora vem investindo em prevenção com a ajuda da tecnologia.
“Começamos a estabelecer a jornada de cuidado dos beneficiários, a pegá-los
pela mão e a ajudá-los a fazer uso do sistema da forma correta”, afirma Raquel
Giglio, vice-presidente de saúde e odontologia da SulAmérica.
Os
avanços proporcionados pela tecnologia chegam em um momento financeiramente sui
generis para as operadoras de planos de saúde. Neste ano, com as cirurgias
adiadas e os beneficiários saindo menos de casa, os planos registraram queda na
sinistralidade e têm apresentado bons resultados em meio à pandemia.
O
lucro da SulAmérica disparou 91% no segundo trimestre deste ano em relação ao
mesmo período do ano passado, para 498 milhões de reais. Mas o efeito da
pandemia nas contas das operadoras daqui para a frente é difícil de estimar.
“Esse
nível de sinistro não é normal e a tendência é que volte aos patamares
registrados antes da crise. O que preocupa no longo prazo é como a alta do
desemprego vai afetar o número de beneficiários”, afirma Gabriel Machado,
analista da corretora Necton. O mercado de planos de saúde é baseado
principalmente nos contratos empresariais, que correspondem a 67% dos
beneficiários das operadoras.
Com o
desemprego em alta, a debandada já começou. Dados da Agência Nacional de Saúde
Suplementar revelam que os planos de saúde perderam 283.000 beneficiários entre
março e maio deste ano. Uma projeção feita pela consultoria Deloitte mostra
que o setor poderá perder de 5,7% a 13,5% de seus 47 milhões de clientes com a
alta do desemprego.
Sem
vínculo formal com uma empresa, o brasileiro, que passou a se interessar mais
pela saúde suplementar devido à ameaça imposta pela pandemia, enfrenta grande
dificuldade para conseguir uma cobertura. Boa parte das operadoras deixou de
oferecer planos individuais porque os reajustes periódicos são limitados pela
Agência Nacional de Saúde. “Vejo operadoras entrando em contato com o
funcionário que foi desligado para oferecer uma alternativa de plano.
A
palavra de ordem atualmente é ‘retenção de clientes'', muito mais do que
‘aquisição'' ”, afirma Luis Fernando Joaquim, sócio da Deloitte para a área de
saúde. Em sérias dificuldades com a crise, as empresas também têm precisado
negociar reajustes menores para permanecer com suas operadoras.
“No
ano passado, os reajustes ficaram na casa dos 20%. Neste ano, estamos
negociando até menos de 10% para algumas empresas”, afirma Luis Alexandre
Chicani, presidente do conselho da gestora de benefícios BenCorp.
A
covid-19 aumentou o peso dos custos de saúde para as empresas. Uma pesquisa da
Aliança pela Saúde Populacional em conjunto com a Associação Brasileira de
Recursos Humanos (ABRH), realizada entre janeiro e março deste ano, mostrou que
40% das empresas ouvidas tiveram um aumento no plano de saúde entre 10% e mais
de 20% em 2019.
Para
tentar aliviar um pouco o orçamento, as empresas dividem os custos com os
funcionários por meio da coparticipação no custeio do plano — 61,9% disseram
recorrer a esse recurso, enquanto 42,1% declararam ter programas de gestão de
saúde. A solução passa por estimular os colaboradores a se cuidarem antes que
uma doença se apresente, algo que a tecnologia deve ajudar bastante a partir de
agora.
“As
empresas precisam trazer para si a responsabilidade pela prevenção”, afirma
Paulo Sardinha, presidente da diretoria executiva da ABRH. Um levantamento da
Mercer March Benefícios mostrou que a telemedicina foi incluída por 54% das
empresas que alteraram os benefícios de saúde para os funcionários durante a
pandemia.
O
Grupo Boticário, de cosméticos, iniciou há dois anos uma mudança com o objetivo
de gerir internamente a saúde de seus funcionários. Criou campanhas de
prevenção ao câncer e ampliou o programa de acompanhamento para grávidas depois
de perceber que nas localidades em que o programa existia eram menores os
índices de internação na UTI neonatal. Com a chegada da pandemia, a
implementação da telemedicina foi acelerada.
“A
sensibilização para a gestão da saúde vem pelo amor ou pela dor. O caminho do
amor é entender que com saúde o funcionário trabalha melhor. Pela dor é a conta
cara do plano de saúde, com elevados reajustes, porque não foi feita a gestão
daquele sinistro”, afirma Renata Simioni, gerente de saúde corporativa do
Boticário.
Ainda
não se sabe como vão ficar as regras para a telemedicina quando a pandemia
acabar. A regra em vigor até o início deste ano é de uma resolução do Conselho
Federal de Medicina (CFM) de 2002. No ano passado, o CFM emitiu uma nova
resolução sobre o tema. Mas a regra gerou tanta discussão que acabou sendo
revogada. O principal ponto de discórdia era a possibilidade de realização da
primeira consulta com um paciente via telemedicina.
Quem
é contra a liberação dessas consultas argumenta que a avaliação do paciente
fica prejudicada sem o exame físico. Também existe a preocupação de que a
liberação leve a serviços em que o atendimento remoto seja compulsório, e não
mais uma opção do paciente. O CFM trabalha em uma nova resolução, que deverá
sair até o final deste ano e entrar em vigor quando a pandemia acabar.
“A
telemedicina passou a fazer parte do cotidiano, mas tem de ser feita com
segurança. A responsabilidade do médico não muda, e a relação de confiança com
o paciente precisa ser preservada”, afirma Donizetti Dimer Giamberardino Filho,
vice-presidente do CFM. A telemedicina tem potencial para ampliar a capacidade
de atendimento do sistema de saúde brasileiro, sem a necessidade de abrir
hospitais, na avaliação do professor Chao Lung Wen, professor responsável pela
área de telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
“Isso é humanização, porque significa ampliar o acesso à saúde”, diz Wen.
“A
telemedicina, se realizada de forma responsável, poderá ajudar na quebra de
paradigmas, para que a medicina seja vista não só como o cuidado das doenças
mas também como uma forma de evitar que a sociedade fique doente.” A covid-19
deixaria, assim, uma boa lição ao Brasil.