Governos se aliam a setor de seguros para reduzir impactos de catástrofes no mundo
Países com recorrência de desastres naturais compram resseguro para fundos emergenciais
Valor Econômico - 13 de Maio de 2024A tragédia no Rio Grande do Sul trouxe à tona uma questão incômoda: o país não está preparado para enfrentar situações catastróficas. Com eventos climáticos se tornando mais frequentes e severos, o setor de seguros e resseguros se posiciona como um dos principais aliados para a implementação de soluções que possam reduzir ou até prevenir os impactos de enchentes, deslizamentos e outras ocorrências.
Algumas regiões do globo enfrentam eventos catastróficos com
recorrência e as soluções adotadas por governos locais podem inspirar o Brasil
a criar uma rede de proteção à população mais vulnerável. Em países na rota de
furacões do Atlântico Norte, como as nações do Caribe e o México, os governos
costumam criar “fundos de resseguro”, que servem tanto para subvencionar a
aquisição de apólices pela população e pequenas empresas, como também
viabilizar a reconstrução das áreas atingidas por meio das próprias indenizações
recebidas das coberturas.
O resseguro é uma espécie de seguro do seguro. Por meio
desse mercado, as seguradoras também transferem parte desse risco para um
terceiro agente, o ressegurador. Pedro Farme, CEO da Guy Carpenter no Brasil,
corretora internacional de resseguros que faz parte do grupo Marsh McLennan,
explica que soluções na qual o Estado adquire apólices ou capacidade de
resseguro — repassa para o mercado ou utiliza para proteção da própria
estrutura pública — mostram-se eficazes tanto do ponto de vista de rapidez, com
as quais as forças-tarefa de reconstrução são montadas, quanto de
disponibilidade de recursos para as obras.
Pelo fato de usar, na prática, recursos privados para obras
de reconstrução, o executivo explica que “se trata de uma solução com risco
fiscal muito mais baixo”. Os governos contratam apólices que custam uma fração
dos valores previstos para as indenizações, da mesma maneira que o mercado de
seguro tradicional.
O México, por exemplo, faz anualmente a contratação de um
“seguro catástrofe”. No ano passado, essa apólice custou 750 milhões de pesos,
ou US$ 45 milhões, para uma cobertura de US$ 485 milhões, válida até março
deste ano. No caso do país da América Latina, trata-se de uma precaução
historicamente necessária.
De acordo com o Banco Mundial, o México tem mais de 40% do
território e quase um terço da população expostos a furacões, tempestades,
inundações, terremotos e erupções vulcânicas. Conforme a instituição, essa
estatística significa que 30% do PIB tem exposição a três ou mais riscos
catastróficos e os 70% restante a dois ou mais.
A sócia do escritório Campos Mello Advogados, em cooperação
com DLA Piper, Marcella Hill, cita também o exemplo da Inglaterra. “É um país
que sofre muitos problemas de enchentes”, explica.
Segundo a especialista, populações em áreas mais expostas ao
problemas muitas vezes têm dificuldade em contratar proteção contra esses
eventos. O governo britânico instituiu um programa que ajuda as pessoas em
zonas de enchentes a acessar o seguro. Um fundo público faz uma espécie de
subscrição parcial, ou seja, arca com parte do risco da cobertura. “Existe uma
divisão de riscos [entre o setor público e as seguradoras] e isso acaba se
tornando uma proteção para as próprias seguradoras poderem oferecer proteção a
esse público”, pondera. O projeto se chama “Flood Re”.
Segundo o site da plataforma, trata-se de “uma rede de
resseguro que torna a cobertura contra inundações mais amplamente disponível e
acessível como parte do seguro residencial”. O programa, acrescenta o
descritivo, “ajuda as famílias com maior risco de inundação, além de fornecer
informações sobre como tomar medidas para reduzir o risco”.
O líder no Brasil da corretora internacional Gallagher e CEO
Gallagher Re facultativos, Luiz Araripe, explica que o mercado de resseguros é
tradicionalmente voltado a absorver riscos desastrosos. “Entre 40% e 50% de
todo o prêmio de resseguro vêm de catástrofe, muito mais do que por risco”,
afirma.
Nos países mais acostumados com catástrofes naturais, como
México, Chile, Colômbia e EUA, para citar as nações no continente americano, os
seguros têm sido utilizados amplamente como mitigadores de impactos. Araripe
cita o Chile, exposto a terremotos e vulcões, onde as pessoas só podem adquirir
residências se contratarem seguro contra catástrofes.
O CEO de varejo da Gallagher Brasil, Rodrigo Protasio,
lembra ainda que, na Califórnia e na Flórida, dois Estados americanos assolados
por incêndios e furacões, os governos locais compram seguro e resseguro para
fundos de catástrofes. “Na Flórida, o Estado atua diretamente através da
seguradora pública Citizens Property Insurance Corporation, comprando resseguro
e ajudando a viabilizar a contratação de proteção pelos cidadãos.”
A atuação dos governos da Califórnia e da Flórida tem sido
essencial para assegurar acesso à proteção securitária para moradores de áreas
mais vulneráveis aos eventos, porque o volume de perdas se intensificou ao
longo dos últimos anos e praticamente inviabilizaram a subscrição dos riscos
apenas pelas companhias privadas.
Em 2018, por exemplo, incêndios na costa oeste americana
causaram perdas de mais de US$ 13 bilhões às seguradoras, segundo a consultoria
RMS. Em setembro de 2022, o furacão Ian deixou um rastro de destruição estimado
em US$ 100 bilhões. Farme, da Guy Carpenter, explica que um dos desafios para
endereçar eventos catastróficos no Brasil se refere à construção de modelos que
consigam, efetivamente, prever diferentes cenários.
Segundo o especialista, o mercado global já conta com
soluções preditivas muito eficazes para regiões afetadas recorrentemente por
catástrofes. “A temporada de furacões no Caribe e no Golfo do México e até
eventos sísmicos já têm modelos preditivos com capacidade de, estatisticamente,
prever como pode ser o impacto na indústria”, afirma. Essas soluções conseguem
estimar efeitos de, por exemplo, um vendaval ou tempestade tropical sobre o
portfólio de seguradora ou de ativos públicos e o tamanho dos danos que o
evento terá, pondera.
A partir das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul no
ano passado, a Guy Carpenter acelerou o desenvolvimento de um modelo preditivo
de catástrofes climáticas para o Brasil. Segundo o CEO da companhia, a intenção
é disponibilizar a ferramenta até o fim do ano. “Queremos lançar, inicialmente,
dois modelos, um preditivo de alagamento e outro para ventos, mas também vamos
expandir futuramente para outros eventos, como seca, granizo e incêndios.”
Conforme Farme, modelos do tipo aplicados às temporadas de
furacões no Caribe e Golfo do México “conseguem trazer uma antecipação
climática do que vai ser uma temporada, se será mais ou menos ativa e, com
isso, o setor pode calibrar modelos econômicos e medidas preventivas”.
O CEO da Guy Carpenter explica que é preciso entender a
recorrência dos eventos mais severos. “Por exemplo, se se trata de uma
catástrofe improvável na curva estatística, mas grande o suficiente para termos
de nos proteger, se tem recorrência grande ou se vai ocorrer a cada dez anos.
Isso faz diferença enorme para precificação e alocação de recursos.”
O líder da Guy Carpenter no Brasil faz uma ressalva: como o
modelo brasileiro ainda está em fase inicial, não se pode ter ideia da
acuracidade, que tende a crescer conforme mais dados são acrescentados. Mas,
globalmente, essas ferramentas chegam a apresentar, nos mercados mais
avançados, “uma margem de erro de 15% a 10% do valor final observado [de perdas
de seguros]”.
No Brasil, várias iniciativas para melhorar a resposta aos
eventos climáticos têm sido discutidas. O CEO da HDI no país, Eduardo Dal Ri,
cita a proposta feita pela Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg) de
instituição de um seguro catástrofe. “No ano passado houve uma média de três
eventos climáticos significativos por dia e mais de meio milhão de pessoas
desalojadas”, conta. “Esse cenário é alarmante. Em abril, teve início, na
Câmara dos Deputados, a discussão de uma proposta sobre a criação do Seguro
Social de Catástrofe.”
Dal Ri explica que a proposta encabeçada pela CNseg sugere o
pagamento de indenização emergencial de R$ 15 mil por moradia, desembolsada no
dia seguinte ao desastre, como inundações, alagamentos ou desmoronamentos
provocados por chuvas, ou logo após a decretação do estado de emergência ou de
calamidade. O seguro catástrofe seria financiado por uma taxa paga por toda a
sociedade por meio das contas de energia. A cobertura prevê, além da
indenização emergencial de danos materiais, um auxílio funeral.
A CNseg divulgou, em abril, a Agenda Institucional 2024, que
inclui outras medidas para endereçar o quadro de mudanças climáticas. O
documento defende a criação do Conselho Nacional de Segurança Climática para
integrar as ações federais e subnacionais. Na visão da entidade, o fórum teria
participação dos governos federal, estaduais e municipais, além de
representantes do setor privado, financeiro, acadêmico e sociedade civil. A
confederação pretende ainda neste ano criar um “hub” de informações de perdas
seguradas decorrentes de eventos climáticos. “Com dados de fontes públicas e
privadas, teremos um repositório de informações relacionadas a eventos e dados
climáticos e seus impactos nas operações das associadas da CNseg e federações”,
dizem os técnicos do órgão.
O vice-presidente da comissão de seguro rural da Federação
Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), Daniel Nascimento, cita que a entidade tem
mantido conversações com o governo para a criação de um fundo catástrofe de
seguro rural. “Seria uma solução para mitigar o risco do produtor e para as
seguradoras estarem amparadas”, afirma. O fundo teria como função tanto
indenizar parte das perdas no setor agro quanto ajudar na subvenção para
contratação de seguros por parte dos empreendedores.