Previdência tem captação atípica e digere novo marco
Modernização das regras inclui contratação de renda em ciclos e restrição à portabilidade em plano exclusivo
Valor Econômico - 19 de Abril de 2024Os fundos de previdência apresentaram captação líquida atípica no primeiro trimestre de 2024 e atraíram R$ 11,1 bilhões, 56% do que entrou no ano passado inteiro, segundo a Anbima, que representa o mercado de investimentos. Geralmente, são os últimos meses de cada ano que atraem o maior volume para a categoria por causa do benefício fiscal para quem constrói suas reservas para aposentadoria no plano gerador de benefício livre (PGBL), em que o contribuinte pode abater 12% da renda tributável na declaração de Imposto de Renda (IR). Isso aumenta sazonalmente os aportes.
Nesta janela de tempo mais curta há uma certa normalização
da captação após os eventos de crédito no início de 2023 que detrataram a
performance também de fundos de previdência. Há reflexos ainda da taxação de
fundos fechados exclusivos ou restritos com imposto semestral e das mudanças de
lastro em títulos bancários e de crédito isentos.
Um dos destinos dos recursos das famílias ultrarricas era o
restrito ligado ao Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL), mas o governo fechou
essa brecha, proibindo a constituição de novos fundos de gestão patrimonial de
previdência com saldo individual de R$ 5 milhões. Tal restrição veio no pacote
de modernização das regras do setor com o novo marco estabelecido pelo Conselho
Nacional de Seguros Privados (CNSP), em fevereiro.
A Susep regulamentou as resoluções nesta semana. A taxação
dos exclusivos, casada com os “órfãos” dos títulos bancários isentos, começava
a incrementar o dinheiro em planos do tipo VGBL, que explica boa parte do fluxo
na previdência no primeiro trimestre, diz Marcelo Flora, sócio responsável pelo
canal digital do BTG Pactual e pelo negócio de vida e previdência.
Na previdência, quem escolhe a tabela regressiva, a alíquota
de tributação é de 10% após 10 anos, há possibilidade de compensação de ganhos
e perdas no resgate e sucessão patrimonial sem passar por inventário. Só que um
detalhe cria uma espécie de reserva de mercado para as grandes seguradoras, diz
Flora.
Se o participante fizer portabilidade do plano ligado a um
fundo exclusivo de previdência antigo para o plano de uma nova seguradora, ele
perde o benefício. “Isso criou uma desvantagem competitiva para os entrantes”,
afirma. “Cria-se a situação em que o cliente tem um benefício grande em manter
seus recursos no prestador atual, que vai até poder cobrar mais caro porque o
benefício tributário compensa, o cliente vai aceitar.”
Esse efeito colateral tem sido discutido nos fóruns da
Fenaprevi, que representa as empresas de previdência, e na Anbima. A pauta da
concorrência é um tema sensível para o regulador, diz o executivo do BTG.
Segundo a Fenaprevi, os fundos exclusivos nunca foram
considerados pela entidade como alavanca de captação. “Mesmo porque os
objetivos e características da previdência são muito distintos”, escreve em
nota. À frente, representantes do setor esperam um período profícuo para a previdência
complementar com o novo marco e pela combinação de legislações recentes.
Dentro da Lei de Garantias, quem tem recursos na previdência
poderá usar suas reservas para contratar crédito mais barato.
Houve alteração também no regime tributário, com o
contratante do plano podendo escolher qual modelo mais lhe convém na hora do
resgate ou do primeiro benefício de renda. Não precisa mais apontar no escuro
se vai ser a tabela progressiva ou regressiva de IR. A adesão automática em
planos de previdência empresariais foi outra inovação trazida pela legislação.
Uma das evoluções mais relevantes que consta nas circulares
da Susep é a instituição do chamado ciclo de vida, em que o cliente da
previdência complementar terá diferentes alternativas para receber o volume que
poupou ao longo do tempo, não só quando se aposentar. “Me arrisco a dizer que é
um dos momentos mais positivos em termos de regulação”, diz Sandro Bonfim,
superintendente de produtos da Brasilprev. “Muitas vezes, o cliente não quer a
renda vitalícia com juros garantido. Quer outro tipo renda. Quando há mais
opções na fase desacumulação, algo muito personalizado, faz com que o setor se
adapte melhor às necessidades do cliente.”
Estevão Scripilliti, diretor da Bradesco Vida e Previdência,
diz que o arcabouço cria oportunidades para oferta de renda em vários ciclos.
Na regra anterior, quem se aposentasse tinha que decidir se convertia a
poupança acumulada em renda vitalícia num único momento. Na hipótese de falecer
um ano depois, o dinheiro não usufruído ficava com a seguradora, não era
transmitido a herdeiros.
Com a revisão regulatória, há a possibilidade de fazer
várias conversões. Quem deixa de trabalhar aos 65 anos, pode contratar uma
renda por cinco anos, e aos 70 e 75 anos fazer novas conversões, optando pela
renda perpétua só aos 80, exemplifica Scripilliti. “E em cada conversão de
renda, ele pode tomar ao preço de mercado mais apropriado. As seguradoras vão
competir pelos ciclos de renda.”
As alterações ocorrem numa fase em que a previdência
complementar, uma indústria relativamente nova no Brasil, atinge um certo grau
de maturidade com o PGBL e o VGBL completando mais de duas décadas. Há uma
massa mais graúda de participantes próxima de se aposentar e fazer esse tipo de
escolha. É um tema caro para a estabilidade financeira do setor que hoje reúne
cerca de R$ 1,4 trilhão, e vai ter que lidar com a maior longevidade da
população. Em vez de administrar o risco atuarial de 25 anos, as seguradoras
poderão se planejar em ciclos mais curtos, de cinco a dez anos. “Vai ter um
volume de recursos a ser trabalhado nos próximos cinco ou dez anos maior do que
teve até aqui”, diz Scripilliti.
Rudolf Gschliffner, chefe de produtos da gestora de recursos
do Santander, diz que será possível fazer, inclusive, a portabilidade de renda.
Antes, o cliente transferia todo o dinheiro do plano de uma seguradora A para a
B. “A partir do momento em que começa a usufruir do benefício da renda
previdenciária, ele vai poder escolher com que seguradora quer ter aquela
renda, vai ser uma decisão pautada no quanto competitiva vai ser a oferta, a
companhia pode se basear no seu financeiro, no atuarial, na assunção do risco.
Isso empodera o participante.” Sob essa ótica, o executivo
diz que a previdência deixa de ser um produto conhecido como só de acumulação
para ser um instrumento de renda simultânea, ampliando o escopo de uso para
reservas de longo prazo. O padrão do mercado hoje é o cliente resgatar tudo na
hora que precisa do benefício. As novas regras valem para quem tem planos
antigos, mas o setor vai ter que se adaptar.