Com cláusula de retomada, seguradoras devem assumir mais obras
Caso em Mato Grosso que inaugurou uso de recurso é referência para outras licitações
Valor Econômico - 04 de Novembro de 2024A possibilidade de uma seguradora assumir uma obra pública paralisada e garantir a execução do projeto deve se tornar mais comum em breve, com o lançamento de novas licitações com a chamada cláusula de retomada no seguro garantia. Depois do primeiro caso, em abril deste ano, no Mato Grosso, outros estados, como Paraná, Sergipe e Pernambuco, buscaram seguradoras para entender melhor os detalhes do modelo, conforme apurou o Valor. No próprio Mato Grosso, já foram lançadas outras três licitações nos mesmos moldes.
Desde o fim de 2023, quando o prazo para adaptação à Nova
Lei de Licitações foi encerrado, ficou estabelecido que os contratos de seguro
garantia, comuns em grandes obras, teriam a chamada “cláusula de retomada” no
caso de projetos acima de R$ 200 milhões. Essa cláusula prevê que, em caso de
inadimplência da empresa contratada para uma obra pública, a seguradora irá
assumir a responsabilidade pela conclusão do contrato.
No Mato Grosso, foi aprovada uma lei que reduziu o valor que
exige a cláusula de retomada para R$ 50 milhões, segundo o secretário de
infraestrutura e logística, Marcelo de Oliveira. A primeira licitação foi para
o asfaltamento de 50 km da rodovia MT-430, cujas obras já foram iniciadas.
“Foram nove meses de conversas com as seguradoras para desenhar esse modelo e
deu certo. Do lado das construtoras, elas viram que não podem apenas pegar o
edital, ler e chegar no dia do processo licitatório com a apresentação dos
preços. Elas têm que mostrar conhecimento do local, conhecimento da obra e têm
que conseguir o seguro”.
A emissão de prêmios de seguro garantia cresceu 22% nos
primeiros sete meses do ano, considerando, além do seguro das obras, o seguro
garantia judicial. O produto é apontado entre aqueles com maior potencial de
expansão. Um eventual empecilho para o avanço é a capacidade de cobertura das
resseguradoras (as seguradoras das seguradoras), que pode ser insuficiente caso
os investimentos do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) aumentem
nos próximos anos, diz Jorge Sant’anna, presidente da BMG Seguros. “O PAC, que
ainda não decolou, preconiza que vamos ter um investimento de R$ 1,7 trilhão,
sendo que de 2023 a 2026 seria R$ 1,4 trilhão. O esperado é que no próximo ano
tenha um crescimento das obras, porque o governo vai ter que resolver o
atraso”, diz.
Segundo Sant’anna, a crise do agronegócio de 2021 e 2022 e o
estresse no crédito desencadeado pelo caso Americanas em 2023 provocaram
retração dos resseguradores estrangeiros, que passaram a olhar o Brasil como um
país “não tão livre de riscos”, afirma. “Continuamos vendo essa retração até
agora”, diz. “Hoje, o seguro garantia está numa posição importante, com
infraestrutura regulatória para suportar crises, com seguradoras que sabem
operar, mas o mercado de resseguro está assustado”, afirma. “Há três anos, a
capacidade total das resseguradoras no país girava em torno de R$ 36 bilhões.
Houve uma queda de quase 6% desde 2021 e acho que este ano será de mais queda.”
Mato Grosso foi o 1º caso e, a partir dele, setor
segurador e as construtoras começaram a ter mais conhecimento
Cassio Amaral, sócio do Machado Meyer, também acredita que
“pode haver uma dificuldade do estrangeiro entender a mudança de lei e dar
capacidade suficiente para fazer os projetos do PAC”. Segundo Pedro Farme,
presidente da corretora de resseguros Guy Carpenter no país, o Brasil é hoje a
maior exposição do mercado de resseguros para seguro garantia e, de fato, há um
gargalo de crescimento da capacidade para os grandes grupos. “Quase que o
mercado mundial inteiro de resseguros já está no seu limite para alguns
tomadores brasileiros e, nesse sentido, é esperada certa restrição de
capacidade para os mesmos nomes”, diz. “No entanto, novas companhias, novos
segurados que queiram comprar seguro garantia terão uma abundância de
capacidade”, afirma, ressaltando que os limites no Brasil são muito superiores
aos alocados em outros países.
Roque Melo, presidente da comissão de crédito e garantia da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg) e presidente da Junto Seguros, diz que não há o risco do mercado sofrer com a ausência de capacidade das resseguradoras, mas que é necessário que as seguradoras se atentem que irão precisar de mais investimentos para atuar com esse tipo de produto e que a análise do risco será mais complexa. “Em termos de precificação, haverá mudanças no mercado também”, afirma. Para ele, nem todas as seguradoras estarão capacitadas para assumir esse risco. “Será um mercado com um número menor de seguradoras, mas isso não preocupa porque teremos um número suficiente para ter competitividade”, diz Melo.
A expectativa é que, em 2024, o seguro garantia cresça
29,3%, segundo a Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg), que espera
também um avanço de 17% em 2025. “Estamos muito esperançosos”, diz Esteves
Colnago, diretor de relações institucionais da entidade. “O Mato Grosso foi o
primeiro caso e, a partir dele, o setor segurador e as construtoras começaram a
ter mais conhecimento. Isso tem ajudado em nossas conversas com outros
estados”, afirmou.
Até agora, cabia basicamente aos estados a tarefa de
analisar a situação financeira das candidatas a uma obra pública. Com esse
modelo de seguro, há praticamente uma terceirização dessa função para as
seguradoras, que irão avaliar os balanços antes da contratação do produto,
explica Colnago. “A seguradora vai exigir o mínimo de governança, vai exigir um
balanço, o que será positivo do ponto de vista também do setor público.”
Luciana Dias Prado, sócia do escritório de advocacia
Lefosse, avalia o modelo como um “ganha-ganha” para o Estado e para o mercado
securitário. “Para a seguradora, o risco de crédito é minimizado porque ela
deixa de ter que cobrir uma espécie de fiança para construtoras que podem ficar
sem condições financeiras”, diz. O prejuízo, segundo ela, pode ser menor que o
do “seguro performance”, modelo mais tradicional em obras, que garante também a
execução do contrato com pagamento de indenizações caso as condições de uma
licitação ou concessão não sejam cumpridas.
Colnago estima que o mercado brasileiro tem 13 seguradoras
que poderiam atuar com esse tipo de produto. O interesse dependerá, claro, se o
produto, de fato, deslanchar. Nos últimos anos, algumas empresas começaram a
ampliar equipes para dar conta da potencial demanda, contratando, por exemplo,
gente especializada na análise e na gestão de obras. Na Tokio Marine, que
emitiu a apólice no caso do Mato Grosso, a preparação teve início em 2016,
quando a lei era só um projeto, diz Caroline Ayub Silva, superintendente da
companhia. “Contratamos engenheiros para estudar quais documentos das obras
deveriam ser analisados e montamos uma estrutura junto com compliance e a área
jurídica. No fim do ano passado, ampliamos o número de engenheiros e passamos a
ter equipe de subscrição, de análise de crédito e comercial especialistas em
seguro garantia.”
Na BMG Seguros, a equipe foi contratada em 2019. “A
seguradora tem que entender o que é o projeto, tem que acompanhar a obra. No
final, é a seguradora que vai ver se está acontecendo alguma coisa, se tem
algum desvio de custo e prazo. O objetivo da lei é reduzir também a corrupção
durante o desenrolar do projeto”, diz Sant’anna. A apólice emitida pela
seguradora é equivalente a até 30% do valor total da obra. Se houver
inadimplência por parte da construtora, a empresa de seguros vai decidir entre
duas alternativas: concluir a obra, sendo responsável por encontrar outra
construtora para seguir com os trabalhos, ou pagar o valor total da apólice,
como explica Amaral, do Machado Meyer.
A escolha vai depender de cada caso, afirma Amaral. Supondo
que uma obra de R$ 200 milhões seja abandonada após metade ter sido construída,
como a construtora original ficou com 50% do valor da obra, a seguradora entra
na obra com um saldo de R$ 100 milhões para cumprir os outros 50%. Se ela
encontrar uma construtora que termine o projeto por esses R$ 100 milhões, não
terá que pagar nada. Na vida real, porém, é esperado algum ajuste de preço para
a retomada das obras, por fatores como um eventual aumento da inflação dos
materiais ou por gastos com novas licenças, como explica Amaral. Se o valor
para essa etapa final for superior a R$ 100 milhões, a seguradora desembolsa
até 30% do valor do contrato, que, no caso desse exemplo, seria de R$ 60
milhões. Se o custo for maior que os R$ 160 milhões, o Estado banca a
diferença. “Em casos de o sobrecusto ser muito grande, pode ser que as
seguradoras optem por apenas pagar os 30%”, diz Amaral.
A lei diz ainda que, caso haja aditivos, devido à mudança de
escopo e prazo, a seguradora é obrigada a segui-los, tendo o direito de cobrar
um adicional por isso.
Ainda há alguns pontos que devem evoluir, na avaliação de
Colnago. A CNseg discute com o Congresso a criação de uma minuta de decreto
visando a blindagem do valor do seguro contra, por exemplo, a cobrança de
multas que seriam de responsabilidade da construtora original da obra.
“Queremos que fique mais clara essa separação de obrigações”, afirma. Para
Thomaz Kastrup, também sócio do Machado Meyer, a lei, do jeito que está hoje,
ainda “não dá o conforto” de que todo o passivo da obra, como ações trabalhistas
e fiscais, ficará com o antigo responsável. “Não ficaria surpreso de ver
seguradoras sendo responsabilizadas e vistas como sucessoras da construtora do início
da obra. Esse é um problema que tem que ser resolvido”, diz.
Outro desafio para as seguradoras será operacionalizar a
retomada do projeto, segundo Amaral. “Só o tempo vai dizer como será essa
operacionalização. Será preciso, por exemplo, fazer um inventário da obra,
buscar novas licenças, pensar na assinatura de novos contratos. É uma regulação
de sinistro muito complexa”, afirma o advogado.